Lei garante que pelo menos 30% dos recursos repassados pelo Fundo Nacional da Educação sejam usados na compra de produtos da agricultura familiar. Grande mérito é reunir três campos estratégicos quando se fala de desenvolvimento social sustentável: educação, segurança alimentar e nutricional e inclusão produtiva dos pequenos agricultores.
Num município praiano situado na região Sudeste do Brasil, Dona Josefa, uma agricultora familiar, Joana, nutricionista da prefeitura, e Dona Rosa, merendeira de uma escola pública, têm hoje um propósito comum: tornar a alimentação escolar mais nutritiva e saudável, com a utilização de alimentos in natura, produzidos localmente. Essas três mulheres somam esforços para introduzir um alimento novo na alimentação escolar, cultivado com sucesso por diversos agricultores familiares da região, o inhame-rosa. Anos atrás, o inhame-rosa nem sequer era conhecido da população local, mas o alimento se mostrou muito adaptado ao solo da região e caiu no gosto dos produtores. Outros agricultores do município também têm fornecido alimentos diversos, frescos e de qualidade, para o cardápio da alimentação escolar. Dona Josefa, a agricultora, preocupa-se com a qualidade e continuidade de fornecimento de seu produto, garantindo mercado para sua produção que antes apodrecia em suas terras. A Joana se interessa não apenas pelos aspectos nutricionais da merenda, mas também pela construção de um diálogo permanente com agricultores da região, para identificar os alimentos que estes produzem e sua potencial utilização na alimentação escolar. Dona Rosa, a merendeira, cuida da preparação e apresentação dos alimentos para que sejam bem aceitos pelos alunos da escola.
O respeito à vocação agrícola local e o uso de gêneros alimentícios básicos, com predominância dos in natura, típicos da produção familiar, foram algumas das discussões que propiciaram a construção de pontes entre a alimentação escolar e a agricultura familiar no Brasil no decorrer dos últimos anos. Aos poucos essa pauta foi ganhando robustez e consolidou-se numa agenda que deflagrou o estabelecimento de novos arranjos políticos e institucionais para a criação do Programa Nacional da Alimentação Escolar (Pnae), em sinergia com outras estratégias públicas de fortalecimento da agricultura familiar, entre as quais se destaca o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).
Uma refeição (saudável) por dia
O Pnae – criado oficialmente em 1954 pelo Ministério da Saúde, sob a inspiração de Josué de Castro, e depois transferido, em 1955, para o Ministério da Educação – é uma das mais antigas políticas públicas de segurança alimentar e nutricional (SAN) do país. A Constituição de 19881 deu novo impulso ao programa ao determinar no artigo 208, inciso VII, que é dever do poder público garantir, a todos os escolares do ensino fundamental em escolas públicas, o direito à alimentação no período em que ficam na escola. Sob gestão do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE/MEC), o Pnae deve movimentar em 2011 cerca de R$ 3,1 milhões, chegando a cerca de 45 milhões de crianças e jovens que frequentam as escolas públicas, o que equivale a aproximadamente 24% da população brasileira. O programa garante aos alunos pelo menos uma refeição ao dia, durante todo o calendário escolar.
Em anos mais recentes, graças à vontade explícita daqueles que defendem a SAN e o direito humano à alimentação adequada – leia-se de gestores públicos comprometidos e de ativistas da sociedade civil – é que se tomou a decisão ousada de vincular o programa da alimentação escolar às ações da agricultura familiar para que juntos pudessem impulsionar seus objetivos centrais: fazer chegar à mesa das escolas alimentos mais nutritivos, produzidos regionalmente e, portanto, mais frescos e saudáveis; e garantir um mercado local, assegurado pelo poder público municipal (Educação e Agricultura), com a possibilidade de gerar renda continuada e ainda fortalecer os circuitos locais da produção de alimentos. Esse foi o princípio da Lei 11.947/2009, cujo artigo 14 garante que pelo menos 30% dos recursos financeiros repassados pelo FNDE sejam direcionados para a aquisição de produtos da agricultura familiar, priorizando-se os assentamentos de reforma agrária, as comunidades indígenas e quilombolas. O grande mérito dessa norma é reunir três campos estratégicos quando se fala de desenvolvimento social sustentável: educação, segurança alimentar e nutricional e inclusão produtiva dos pequenos agricultores.
Importa resgatar que as políticas públicas de segurança alimentar e nutricional vêm assumindo contornos mais nítidos nos últimos anos no Brasil, com o aumento da oferta de programas e ações, e também o crescimento expressivo do orçamento público para a área. Credita-se isso à prioridade proporcionada pelo “período Fome Zero”, estratégia política adotada nos oito anos do governo Lula para combater a fome e promover a segurança alimentar e nutricional. Nesse período, com a aprovação da Lei Orgânica de SAN (Losan) em 2006, a segurança alimentar e nutricional deixou de ser um “tema em discussão” e assumiu statusde política de Estado. O país passou a contar com precioso marco legal que, além de reconhecer que todos os brasileiros têm direito a uma alimentação adequada e saudável, estabelece que as políticas que garantem esse direito devem ser formuladas e ofertadas segundo o paradigma da universalidade, da gestão intersetorial e da complementaridade, de modo a se fortalecerem mutuamente, otimizarem seus orçamentos e conseguirem chegar aos titulares de direitos com a rapidez necessária. Em que pese essa conjuntura favorável, temos ainda muita estrada pela frente para que todos os que vivem em território nacional tenham seus direitos garantidos.
Insegurança alimentar
O problema da insegurança alimentar no Brasil é resultado de um modelo de desenvolvimento que concentra a renda e as terras e gera exclusão social no campo e nas cidades. É importante alertar que a ocupação do espaço agrário é definida por duas formas de produção de alimentos que se antagonizam: de um lado, o modelo agroexportador baseado na grande propriedade monocultora, privilegiada pelos financiamentos oficiais agrícolas e outras benesses da política econômica, e que destina sua produção basicamente à exportação de alimentos na forma de mercadorias (commodities); de outro, o modelo da agricultura familiar e camponesa, estruturado por pequenas propriedades de produção diversificada, voltada ao mercado interno e historicamente excluída dos programas de incentivo à agricultura, embora a quase totalidade de sua produção seja dirigida ao mercado interno (mais de 70% dos alimentos disponíveis no Brasil são produzidos pelo setor). A agricultura familiar, sem dúvida, contribui para garantir a segurança alimentar e nutricional da população, além de evocar os aspectos sociais da redução da pobreza rural e da relação sustentável com a natureza, no processo de desenvolvimento no campo.
Considerando a importância e o caráter inovador da política de Estado, um projeto de pesquisa está em curso sob responsabilidade de duas organizações não governamentais: a Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos (Abrandh) e o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase). A pesquisa, financiada e apoiada pelo FNDE e pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), percorreu quinze municípios nas cinco regiões do país, entre novembro de 2010 e maio de 2011.2 Em cada localidade visitada, o objetivo foi verificar, com agricultores familiares, gestores e técnicos municipais e representantes da sociedade civil, os pontos positivos, as potencialidades e os desafios para pôr em prática o artigo 14 da Lei 11.947/2009, que determina aos municípios a compra de no mínimo 30% de produtos da agricultura familiar em nível local.
Os relatos3 apresentados no trabalho de campo vêm se mostrando reveladores. Eles dão uma pequena mostra do círculo virtuoso que vem se formando a partir do novo desenho para a aplicação do Pnae, que procura aliar a ampliação do mercado institucional para a diversificada produção de alimentos cultivados por agricultores familiares à garantia de uma alimentação de qualidade nas escolas.
Embora de execução recente, o artigo 14 fortaleceu um processo fundamental – desencadeado anteriormente pelo PAA e por outras iniciativas públicas – de valorização da agricultura familiar no Brasil, com a ampliação do mercado institucional voltado para a aquisição de produtos de agricultores menos capitalizados. Os resultados, ainda muito preliminares, apontam para uma via promissora, já que é possível observar, em alguns municípios, o engajamento de gestores municipais para retirar da invisibilidade pequenos produtores, identificando, em sua produção, os alimentos que podem ser utilizados na alimentação escolar. Observa-se a aproximação entre os pequenos produtores, os agentes públicos, as merendeiras e os consumidores finais – os alunos. Valorizam-se os produtos regionais, e a economia local é aquecida.
Desafios atuais
Muito embora a iniciativa seja meritória e já esteja gerando frutos, alguns desafios necessitam ser mais bem enfrentados e ainda há muito a ser feito. As diferenças inter-regionais e os déficits de informação e de capacitação tanto de gestores quanto de agricultores são desafios que precisam ser superados para que a iniciativa se consolide. Deve-se investir na organização dos processos e procedimentos administrativos simplificados necessários para a operacionalização do artigo 14 da Lei, em âmbito municipal. É muito importante que a gestão do Pnae seja feita por gestores locais capacitados e comprometidos com o potencial social do programa. Além disso, é preciso democratizar e facilitar o acesso das informações aos agricultores, mantendo-se canais de comunicação e diálogo social permanente, para que estes se fortaleçam enquanto produtores ativos.
Uma coisa é certa: a agricultura familiar no Brasil precisa de incentivos para que possa se fortalecer. Mais do que produzir alimentos, os agricultores familiares produzem saberes e mantêm viva a diversidade alimentar brasileira, um de nossos maiores patrimônios. Como bem ilustra a fala de uma agricultora na região Sul do país, em meio a uma roda de conversa: “[...] o que eu quero é continuar plantando, apesar de tudo; eu quero continuar sendo agricultora, porque está no sangue [...]. Só quero condições para melhorar e continuar sendo agricultora. Eu não quero sair de lá [da terra], eu quero que meus netos tenham uma vida boa, água saudável, alimentação de qualidade, que as crianças sejam criadas comendo um alimento mais sadio”.
Marília Leão (Enfermeira-sanitarista, Mestre em educação (UNB) e presidente da Abrandh)
Juliana Rochet (Advogada, Doutora em Política Social (UNB) e vice-presidente da Abrandh)
Ana Claudia Santos (Geógrafa, é mestre em Ordenamento Territorial e Ambiental (UFF) e pesuisadora do Ibase).
Vivian Braga (Antropóloga, Mestre em Desenvolviemnto, Agricultura e Socieda (CPDA/UFRRJ) e pesquisadora do Ibase).
Fonte: Revista Le Monde Diplomatique
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